Alienação

A minha avó tem oitenta e dois anos. Faz oitenta e três em menos de um mês. Como é normal nestas idades, padece de maleitas várias, umas mais impeditivas do que outras; a principal, extremamente dolorosa. Custa-lhe andar. Custa-lhe mexer os braços. Custa-lhe muita coisa. Ainda assim, a minha avó mexe-se. Faz a vida dela, todos os dias. Paga as suas contas. Gere a sua casa. Recusa muitas (demasiadas) vezes ajuda. Não é especialmente instruída mas faz questão de se manter informada: sabe o que se passa no mundo, no seu país, na sua rua, na sua família. No seu coração.

A minha avó nasceu em mil novecentos e vinte e oito. Como tal, sabe o que é a guerra. Sabe o que é a ditadura. Sabe o que é não poder ter voz. Sabe o que é ter poucos ou nenhuns direitos. Sabe o que é voltar a tê-los. Sabe que lutar é difícil, duro, demorado, mas que dá frutos. Sabe que se é difícil ganhar direitos, pode ser muito fácil e rápido perdê-los. Sabe, por isso, o que é a cidadania, o dever cívico. 

A minha avó sabe também o que é viver com uma pensão. O que é gastar uma grande fatia da mesma em medicamentos. O que é o aumento dos impostos, a redução das comparticipações, as taxas moderadoras. Sabe o que é a crise porque a sente mais do que muitos de nós. E porque já passou por várias e por coisas que nem conseguimos imaginar. Em oitenta e dois anos, sabe certamente o que são políticos tiranos, políticos prepotentes, políticos levianos, políticos irresponsáveis. E alguns políticos, poucos, que fizeram a diferença.  

Acima de tudo, a minha avó, que sabe como é não ter liberdade, que sabe como é devastador o silêncio de um povo, que sabe o que custa não poder expressar o seu descontentamento, vota sempre. Porque não votar até pode ser uma forma de protesto mas é, acima de tudo, uma forma de alienação. Ontem, mesmo com oitenta e dois anos, mesmo sabendo que o seu voto dificilmente faria a diferença perante um desfecho que já era esperado, mesmo com seis graus de temperatura, mesmo com um vento inclemente, fez questão de ir votar. Como sempre faz. Eu levei-a, mas se não tivesse levado sei que ela iria à mesma, pois se falhasse em cumprir esse que é tanto um dever como um direito tão arduamente conquistado, não dormiria com a sua consciência tranquila.

A minha avó tem, aos oitenta e dois anos, lucidez para perceber que os direitos e a liberdade arduamente conquistados pelos povos em todo o mundo ao longo da história são um dos bens mais preciosos que podemos ter. Tem lucidez para perceber que se os alienarmos e que se nos alienarmos podemos perdê-los. Novamente. E rapidamente. E essa percepção de algo tão básico sobrepõe-se à dor, à doença, à preguiça ou à resignação. 

Perante isto, perante alguém que teria tantas razões para ter ficado ontem em casa, gostava mesmo muito de saber qual é a desculpa de mais de cinco milhões de pessoas para terem optado por não ir votar. Por se alienar. Por ficar em silêncio. E por arriscar perder esse direito.

Comentários

  1. Excelente texto! Este era digno de figurar num periódico... mas esses andam tão corrompidos que provavelmente nem fariam caso. Eu cá faço e, da minha parte, dou os parabéns à tua avó.

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  2. Quem nos dera que os periódicos portugueses tivessem textos deste gabarito...

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  3. A tua avó conhece a guerra, o racionamento, a ditadura, a Pide. A tua avó também conhece o valor da liberdade. Por isso também saiu à rua, em Abril.
    Como bem dizes é pessoa pouco instruída, mas muito informada. Por isso construiu uma forte consciencia civica que nos passou.
    Por isso tenho tanto orgulho na tua avó, minha mãe.
    Por isso tenho tanto orgulho na minha filha.

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