Solo

Passo as minhas mãos pela lisa superfície que é a tua alma
Dela, sinto apenas o áspero roçagar da fina camada de areia que a cobre
Da areia que esconde qualquer porosidade, qualquer imperfeição
Como nada sinto, penso partir
Mas um súbito e inusitado cansaço faz jazer o meu corpo sobre ela
E escutar
Apenas oiço um vago murmúrio, tão distante como as profundezas da terra
Presto atenção
Parece uma voz que me traz palavras sumidas
E tambores
E silêncio
E novamente a voz, agora mais clara
E silêncio.

Ainda deitada, tento afastar a areia
e percebo que o solo, apesar de endurecido pela seca
se desfaz com a força dos meus dedos
Lentamente...
De gatas, raspo-o vigorosamente e tento escutar
Apenas silêncio.
Mas sei que não adormeci e que a voz é real
Os tambores ainda ecoam em mim e abafam o insuportável som desse silêncio
Continuo a escavar, freneticamente, agora com as mãos
Sinto as pedras a cortarem-me os dedos e a terra a entranhar-se nas feridas
Não me importo porque apenas quero voltar a ouvir
E por isso falo
Por isso chamo-te pois essa voz e os tambores e o cru silêncio só podem ser teus
E escuto.
E silêncio.
E acredito que se for mais fundo conseguirei ouvir-te
Ou, pelo menos, que me oiças.

Assim escavo, o sangue a escorrer dos meus braços
Que ardem embora eu não sinta
Porque só me interessa ouvir
Ouvir-te
E escuto novamente
No silêncio, surge um murmúrio
Eu estou mais perto, mas ele, mais longínquo.

E, num último fôlego, encontro-o
Não tu, mas o teu esconderijo
Do qual já fugiste
E onde ficou apenas o teu cheiro
E o teu silêncio.
Os quais tento abraçar
E beber
E sentir
Mas não consigo pois são tão etéreos quanto tu te tornaste
E por isso desisto
Suja e ferida, refaço o meu caminho
Deixando no chão as marcas da minha presença.


Susana Figueiredo, Abril/2008

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