Solidão

Caminho devagar, diluindo-me na multidão de cores e cheiros da rua
Nem mais, nem menos que outros, eu mesma
Igual a eles.
Olhos fitos num ponto do horizonte, que desejo alcançar a cada momento
Porque só ele importa. Ali. Àquela hora. Nada mais.
Um ruído, meio sussurro, meio estrondo, não sei, fez-me desviar o olhar
Para uma porta.
Ali, no meio, ignorada por todos os outros olhos que apenas fitam o seu ponto
Porque só ele importa. Ali. Àquela hora. Nada mais.
A porta é invisível , penso.
A porta é invisível?, pergunto.
Silêncio.
Os ouvidos também fitam o ponto.
Porque só ele importa. Ali. Àquela hora. Nada mais.
Vou entrar, grito, num grito mudo para os ouvidos que fitam o ponto.
E entro.
E saio do outro lado, vendo a mesma rua, a mesma multidão, as mesmas cores.
Cheirando o mesmo cheiro.
E procuro o meu ponto.
Não o encontro.
Porque ele já não me importa. Ali. Àquela hora. Nunca mais.
Estou livre para olhar em volta
E olho. Com atenção.
A multidão desfaz-se. Fica uma só pessoa. Uma cor. Um cheiro.
É quem importa. Ali. Àquela hora. Nada mais.
Outra pessoa, e outra, e outra.
A cada qual um cheiro e uma cor.
Apenas um cheiro e uma cor. Nada mais.
E não fica ninguém.
Só as pedras azuis e brancas da calçada. E eu.
Olho-as, pela primeira vez, na rua deserta.
E um prédio antigo. E uma janela.
Como quero estar naquela janela.
Porque só ela importa. Ali. Àquela hora. Nada mais.
E da janela vejo a rua.
Sem multidão.
Apenas a rua.
E vejo-me, lá em baixo, nua, fria, sem cor, sem cheiro, sem nada.
A correr para a porta, desesperada.
E ela fechada, trancada por fora.
Dor. Nada.
Porta. Nada.
Eu. Nada.
Rua. Agora deserta. Sem porta. Só a calçada.
E eu, eu?, na janela.
Janela. Nada.
Porque só ela importa. Ali. Àquela hora. Nada mais.
A solidão.

Susana Figueiredo, Janeiro/1999

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