Os tempos em que vivemos
Trabalho há onze anos. Nos primeiros três - quase quatro - fiz estágios, passei recibos verdes, dei explicações para poder equilibrar um salário baixo e pagar as contas, estive um mês e meio sem emprego, enviei uns noventa curriculos nessa altura, tive que aceitar outro estágio, apesar de ter mais de dois anos de experiência... no fundo, fui precária. É claro que tudo teria sido mais fácil se me tivesse mantido em casa dos meus pais, mas não me fazia sentido aos vinte e três anos não ser independente. Fiz o que estava ao meu alcance para lutar por essa independência, passei mesmo por algumas dificuldades, mas consegui. Quando me casei, as coisas tornaram-se um pouco mais fáceis, mas havia sempre um sentimento de insegurança que advinha do facto de estar sempre na corda bamba, e esse sentimento só passou quando entrei para os quadros de uma empresa. Porquê?
As razões de cariz financeiro são as mais óbvias. Ter estabilidade financeira torna possível coisas tão simples como não ter dúvidas se vamos conseguir pagar a renda ou a electricidade ou tão complexas como decidir ter filhos. É que as necessidades básicas de uma criança - saúde, alimentação, educação - não se extinguem no tempo de duração de um contrato a termo certo. Se tomar a decisão de ser independente numa situação mais precária é relativamente simples, quando temos alguém a depender de nós para sobreviver, aí já não pode ser uma escolha tão linear.
Há também razões ligadas à evolução pessoal e intelectual. Quando estudamos, ganhamos competências para fazer melhor, para inovar, para encontrar novas soluções para problemas. Estudar ensina-nos a pensar, a ver outras perspectivas, a analisar. É por isso que devemos estudar. Devemos ler. Devemos querer saber mais. É por isso que devemos estudar sempre. Quando trabalhamos, por outro lado, aplicamos essas competências que ganhámos nos livros e nas salas de aula. No fundo, aprendemos a fazer. E aprenderemos tanto mais e faremos tanto melhor quanto maior for a responsabilidade que nos é dada (atenção, responsabilidade é uma coisa, um cargo é outra bem diferente e é à primeira que me refiro). É uma questão de evolução, de aumento de complexidade, no fundo de aplicação do nosso investimento em conhecimento. Ter um emprego onde possamos crescer dá-nos isso. Não tem que ser um emprego para toda a vida, não é isso que defendo. Defendo é que ter um emprego com validade de um ano, ou dois ou três não nos permite crescer e não permite às empresas e ao país crescer também. Todos perdemos, no fundo.
Na geração dos meus pais, há muitas pessoas que não tiveram qualquer possibilidade de se qualificar. A minha geração é diferente: teve acesso à escola pública, às universidades públicas, a politécnicos. Em muitos casos, com o apoio financeiro e o incentivo dos pais. Os que nasceram nos anos oitenta, que são os que estão agora a entrar (ou não) no mercado de trabalho, tiveram ainda mais acesso e mais incentivo do que os que nasceram nos setenta, como eu. No fundo, nestes trinta anos, houve de facto um esforço de universalização do ensino, o que nos torna sem dúvida na geração mais qualificada de sempre no nosso país. Como tal, na geração que tem mais condições para desempenhar trabalho técnico, inovador. Diria mesmo, na geração com maiores ferramentas para ser empreendedora. É por isso natural que tenha dificuldade em perceber porque é que em trinta anos este país - e por país quero dizer todos nós, as nossas empresas, os nossos políticos, os nossos decisores - não foi capaz de criar as condições para usufruir devidamente do seu capital humano e avançar no seu desenvolvimento.
Parece-me haver várias razões para isso. Começo pelas universidades e o Estado, cada um com a sua parte de culpa na oferta de cursos que não está adequada ao mercado de trabalho que temos - poucas vagas em cursos que permitiriam formar profissionais em áreas onde temos maior escassez, a contrastar com outros que formam centenas de alunos todos os anos sem que haja um mercado de trabalho com capacidade de os absorver até cursos com poucos alunos e médias de nove vírgula seis valores -, por currículos mal construídos, por facilitismo na formação e por uma inadequada orientação para a vida profissional. Há também os empresários portugueses que, de uma maneira geral (é claro que há muitas excepções), não investem, não inovam, não planeiam. Pensam a curto prazo, presos a um modelo de gestão de antigamente. Pensam apenas no custo de ter ideias e de ter massa crítica para as pôr em prática, não no seu benefício. Não se promovem, não fazem com qualidade, não estimulam. Ignoram a importância da investigação e do desenvolvimento para o seu negócio, a maior parte das vezes porque é um investimento sem resultados imediatos. Vivem segundo uma filosofia em que não tem que haver responsabilidade social, em que não tem que haver ética. Não são todos. Mas ainda são demasiados.
E há as próprias pessoas. Como eu já disse, devemos saber sempre mais, estudar sempre mais. Mas também temos que perceber o que estudamos, em que é que vamos investir o nosso tempo. Há cursos e cursos e quando se escolhe um curso é preciso haver capacidade de perceber o que vamos fazer com ele. Não quero dizer com isto que haja áreas do saber menos nobres, quero dizer que é importante perceber se quando acabarmos o curso vamos ter capacidade de aplicar esse saber ou se vai ser apenas um diploma que vai ficar na prateleira. Ou, melhor ainda, se vamos ter a capacidade de pegar no nosso conhecimento e sermos nós próprios inovadores. É que o salto qualitativo que um país pode dar depende de inúmeras variáveis, entre elas a capacidade de arriscar e de mudar.
Isto tudo para dizer que estamos perante um problema que é transversal e que tem de ser resolvido por toda a sociedade. Os políticos que temos tido nos últimos anos, da esquerda à direita, têm substituido o debate construtivo de ideias pela mera retórica e o dever de servir o país pelos seus objectivos pessoais e de ascenção na máquina partidária. Os empresários da velha guarda, quer o sejam por idade ou por filosofia, continuam presos ao paradigma do salário baixo e do trabalho pouco qualificado. Ao aproveitamento de situações de precaridade. A minha geração, eu incluída, ainda arrisca pouco, inova pouco, não luta o suficiente, não coopera, é demasiado individualista. No fundo, a única saída deste labirinto em que nos encontramos terá que passar pela mudança da mentalidade de todo um país. Para isso, é necessário que todos, mas todos mesmo, entendamos que é necessário debater, é necessário sair de casa, arregaçar as mangas, deixar de esperar que outros façam por nós, assumir uma posição mais interventiva na sociedade, nas empresas, abraçar causas, lutar por elas, cumprir o nosso dever para com os nossos pais e para com os nossos filhos, o dever de tentar fazer mais e melhor, não só no trabalho, mas pelo nosso país e pelo nosso povo. Não ter medo de mudar as coisas.
No dia doze de Março algo assim aconteceu. Não se fez para já uma mudança, essa levará o seu tempo. Mas plantou-se a semente. Por tudo aquilo que escrevi e que defendo, não podia deixar de estar lá. E de registar o momento.
Na geração dos meus pais, há muitas pessoas que não tiveram qualquer possibilidade de se qualificar. A minha geração é diferente: teve acesso à escola pública, às universidades públicas, a politécnicos. Em muitos casos, com o apoio financeiro e o incentivo dos pais. Os que nasceram nos anos oitenta, que são os que estão agora a entrar (ou não) no mercado de trabalho, tiveram ainda mais acesso e mais incentivo do que os que nasceram nos setenta, como eu. No fundo, nestes trinta anos, houve de facto um esforço de universalização do ensino, o que nos torna sem dúvida na geração mais qualificada de sempre no nosso país. Como tal, na geração que tem mais condições para desempenhar trabalho técnico, inovador. Diria mesmo, na geração com maiores ferramentas para ser empreendedora. É por isso natural que tenha dificuldade em perceber porque é que em trinta anos este país - e por país quero dizer todos nós, as nossas empresas, os nossos políticos, os nossos decisores - não foi capaz de criar as condições para usufruir devidamente do seu capital humano e avançar no seu desenvolvimento.
Parece-me haver várias razões para isso. Começo pelas universidades e o Estado, cada um com a sua parte de culpa na oferta de cursos que não está adequada ao mercado de trabalho que temos - poucas vagas em cursos que permitiriam formar profissionais em áreas onde temos maior escassez, a contrastar com outros que formam centenas de alunos todos os anos sem que haja um mercado de trabalho com capacidade de os absorver até cursos com poucos alunos e médias de nove vírgula seis valores -, por currículos mal construídos, por facilitismo na formação e por uma inadequada orientação para a vida profissional. Há também os empresários portugueses que, de uma maneira geral (é claro que há muitas excepções), não investem, não inovam, não planeiam. Pensam a curto prazo, presos a um modelo de gestão de antigamente. Pensam apenas no custo de ter ideias e de ter massa crítica para as pôr em prática, não no seu benefício. Não se promovem, não fazem com qualidade, não estimulam. Ignoram a importância da investigação e do desenvolvimento para o seu negócio, a maior parte das vezes porque é um investimento sem resultados imediatos. Vivem segundo uma filosofia em que não tem que haver responsabilidade social, em que não tem que haver ética. Não são todos. Mas ainda são demasiados.
E há as próprias pessoas. Como eu já disse, devemos saber sempre mais, estudar sempre mais. Mas também temos que perceber o que estudamos, em que é que vamos investir o nosso tempo. Há cursos e cursos e quando se escolhe um curso é preciso haver capacidade de perceber o que vamos fazer com ele. Não quero dizer com isto que haja áreas do saber menos nobres, quero dizer que é importante perceber se quando acabarmos o curso vamos ter capacidade de aplicar esse saber ou se vai ser apenas um diploma que vai ficar na prateleira. Ou, melhor ainda, se vamos ter a capacidade de pegar no nosso conhecimento e sermos nós próprios inovadores. É que o salto qualitativo que um país pode dar depende de inúmeras variáveis, entre elas a capacidade de arriscar e de mudar.
Isto tudo para dizer que estamos perante um problema que é transversal e que tem de ser resolvido por toda a sociedade. Os políticos que temos tido nos últimos anos, da esquerda à direita, têm substituido o debate construtivo de ideias pela mera retórica e o dever de servir o país pelos seus objectivos pessoais e de ascenção na máquina partidária. Os empresários da velha guarda, quer o sejam por idade ou por filosofia, continuam presos ao paradigma do salário baixo e do trabalho pouco qualificado. Ao aproveitamento de situações de precaridade. A minha geração, eu incluída, ainda arrisca pouco, inova pouco, não luta o suficiente, não coopera, é demasiado individualista. No fundo, a única saída deste labirinto em que nos encontramos terá que passar pela mudança da mentalidade de todo um país. Para isso, é necessário que todos, mas todos mesmo, entendamos que é necessário debater, é necessário sair de casa, arregaçar as mangas, deixar de esperar que outros façam por nós, assumir uma posição mais interventiva na sociedade, nas empresas, abraçar causas, lutar por elas, cumprir o nosso dever para com os nossos pais e para com os nossos filhos, o dever de tentar fazer mais e melhor, não só no trabalho, mas pelo nosso país e pelo nosso povo. Não ter medo de mudar as coisas.
No dia doze de Março algo assim aconteceu. Não se fez para já uma mudança, essa levará o seu tempo. Mas plantou-se a semente. Por tudo aquilo que escrevi e que defendo, não podia deixar de estar lá. E de registar o momento.
Concordo com grande parte do que dizes, mas quanto a mim há uma parte irrealista e que tem a ver com a mudança de mentalidade. Podem-se esperar algumas aletarções e talvez as feridas destes “trambolhões” ajudem a criar uma melhor consciência de que sem acção não se consegue nada, mas não é de esperar uma mudança muito grande na essência do que somos como povo.
ResponderEliminarHá um livro muito interessante do Geert Hofstede – "Culturas e Organizações - Compreender a Nossa Programação Mental" (http://www.bisturi.net/Default.aspx?tabid=64&CategoryID=126&List=0&catpageindex=5&Level=1&ProductID=6819&language=en-US ) – onde se retrata a cultura dos povos. É o melhor que conheço a respeito de culturas comparadas e resulta não de opiniões, mas de trabalho científico muito sério sobre diversos inquéritos comparativos do contexto cultural de cerca de 100 países, efectuados creio que no fim da década de 80 ou início da de 90.
Desse estudo caracterizam-se as sociedades em 4 parâmetros (mais tarde 5 para acrescentar uma dimensão de perspectiva de longo prazo mais evidente nas culturas orientais) e, sem entrar em pormenores, é muito revelador do que somos. Há um parâmetro, que tem a ver com a incerteza, em que somos o segundo do mundo. Este parâmetro tem a ver com a dificuldade que temos em lidar com o incerto, o ambíguo, o inseguro. Só isso já explica muito…
O livro não é fatalista, pelo contrário diz que o que importa é saber lidar com isto, até porque é muito difícil mudar e certamente não se faz em poucas gerações. Uma das propostas passa inevitavelmente pela boa gestão e, se não é de esperar que os gestores e políticos sejam diferentes do padrão cultural geral, a definição clara de objectivos a atingir ajudaria muito.
Somos por natureza avessos aos objectivos, basta ver o que se passa com a tentativa de aplicar sistemas de avaliação, mas é mesmo na capacidade de definir objectivos, metas e planear o atingimento, assumindo-se as consequências de se atingirem ou não, que provavelmente reside parte da solução para ultrapassar este défice.
Concordo. Aliás, à escala mais micro, creio que o nosso problema crónico de produtividade passa pela (má) gestão, pela dificuldade em decidir, pela inépcia na organização do tempo, das tarefas, das prioridades e, como dizes, na definição de objectivos. Disse algures lá em cima que responsabilidade e cargo são conceitos diferentes e acho que, infelizmente, o conceito de (e a ambição de chegar a) gestor em Portugal se aproxima mais do segundo do que do primeiro.
ResponderEliminarO que pretendi defender aqui foi que um abanão na consciência colectiva pode ser um primeiro passo para um longo caminho a percorrer... mesmo que não consigamos mudar algo que está inerente à nossa cultura, talvez possamos limar algumas arestas. Haver a percepção de que se pode contribuir para a mudança é às vezes o suficiente para despoletar essa mudança.
Enfim... fico a aguardar os conteúdos do teu blog. Não sei se gosto é do matching de 99%, estas coisas costumam correr na família... Beijo grande!
Aprecio as boas intenções, mas são dessas que estão as urnas cheias.
ResponderEliminarComo se pode pensar que um ajuntamento inconsequente de pessoas com motivações tão diversas e/ou vagas possa ser uma semente?
Bem vinda ao admirável mundo novo, minha cara Susana.
Caro Luis,
ResponderEliminarHabituámo-nos a pensar que não podemos nem temos que intervir em nada, que outros resolverão a nossa vida e que para isso basta colocarmos as nossas cruzes numa urna. Um ou dois ou até cem "ajuntamentos inconsequentes" de pessoas podem não gerar a mudança dos factos, podem até ter efeitos práticos nulos a curto prazo, mas pelo menos têm a vantagem de despertarem algumas consciências para a situação actual. E quando digo despertar, não digo apenas despertar para o processo. O que vi nos últimos meses foi formarem-se opiniões mais sólidas (contra e a favor, diga-se) de pessoas que antes não paravam sequer para formar uma opinião. Vim uma vontade de mudança que, apesar de desordenada, está lá e poderá ser no futuro um contra-peso importante Estes ajuntamentos inconsequentes que se foram espalhando um pouco pelo mundo fora podem não ter qualquer efeito imediato neste admirável mundo novo (que, se olharmos para a história, não é tão novo quanto isso), mas pelo menos têm efeito nalgumas cabeças até agrora adormecidas. E isso, para mim, é já uma pequena semente.
Obrigado pela visita ao blog.
Susana
Primeiro, eu é que agradeço. Gosto de quem tem opiniões.
ResponderEliminarSegundo, acho muito bem que tenhas essa visão. Apesar de achar que daqui a mais ou menos anos vais passar para a concordância ou para o desencanto.
E se vês mais gente desperta é por passarmos por uma época de vacas magras e as teves não falam de outra coisa.
Esses tais despertos daqui a 3 anos estarão adormecidos e irão votar no passos coelho. Ele já tem isto montado, é um truque velho, apertar no principio e dar no fim.
Deixo-te um filminho, para veres que nada disto é novo, e que nada muda, Só as técnicas que se usam, mudam.
http://www.youtube.com/watch?v=MEL48khJHRQ